Lanceiros negros:traídos pela história.
Por Spencer Leitman
O livro “Sonhos de Liberdade – o legado de Bento Gonçalves, Garibaldi e Anita”, que será lançado no próximo dia 31 de outubro, na 53ª Feira do Livro de Porto Alegre, tem entre seus autores o historiador norte-americano Spencer L. Leitman, que apresentou a conferência “Os farrapos negros e a política da escravidão”, no seminário internacional realizado em Porto Alegre, em setembro de 2005, em comemoração aos 170 anos da Revolução Farroupilha. O livro será distribuído gratuitamente aos participantes que se inscreverem para o evento de lançamento e a sessão de autógrafos, que contará com a presença dos autores e organizadores. Para conhecer o programa e fazer sua inscrição, clique aqui. Leia também a parte inicial do artigo de autoria de Spencer Leitman, publicada em ViaPolítica. A seguir, a entrevista com Spencer Leitman, realizada pelo jornalista Najar Tubino, por e-mail, e traduzida para o português por Sylvia Bojunga. P - O seu trabalho sobre a participação dos negros na Revolução Farroupilha ajudou a trazer à tona um assunto pouco discutido. O senhor teve essa preocupação ou queria abordar um outro ponto de vista histórico? SL - A partir de minhas primeiras investigações históricas, pareceu um tanto estranho haver pouca ou nenhuma menção sobre o papel dos afro-brasileiros na Revolução Farroupilha. Durante aquele período, a província tinha uma população escrava entre 25 e 30% do total de habitantes, de acordo com a maior parte das estimativas. O vizinho Estado Oriental, hoje Uruguai, já havia libertado e incorporado afro-uruguaios no serviço militar. Os arquivos históricos prestavam informações atormentadoras sobre a participação decisiva dos negros durante a guerra. Os farrapos negros tornaram-se a espinha dorsal das forças rebeldes, pois, diferentemente de seus compatriotas brancos ou mestiços, os quais contavam com suas licenças do exército, eles tinham que permanecer presos a suas unidades. Os farrapos usavam escravos recrutados não apenas para fins militares, mas, cabe ressaltar, também para seus propósitos pessoais. Garibaldi disse isso bem em sua autobiografia, escrita muitos anos depois na Itália, que ele nunca havia visto cavaleiros tão impetuosos e disciplinados como os lanceiros negros do Rio Grande do Sul. Ignorar o papel das minorias em grandes acontecimentos históricos não é algo incomum. Nos Estados Unidos, nós, também, não estudamos o importante papel dos nossos cowboys negros na conquista do Oeste. P - Era muito difícil ser escravo no Rio Grande do Sul naquela época? Existia alguma diferença em relação ao resto do país? SL - Ser escravo em qualquer lugar e em qualquer época é sempre desumano. A escravidão, nas charqueadas, com as de Pelotas, tanto legalistas como farrapas, era brutal e severa, rivalizando nos piores aspectos com os engenhos do Nordeste. Fernando Henrique Cardoso, em seu estudo de base, compreendeu bem as pressões econômicas da época e a severidade dessa escravidão em estilo industrial no Rio Grande do Sul. A escravidão na Campanha foi provavelmente menos severa do que em outros lugares, como observaram viajantes estrangeiros do período, mas essas observações foram o resultado histórico de um ambiente rural. A cultura da escravidão e a necessidade de trabalho colocaram os escravos a cavalo. Para manter em seus lugares os cowboys escravos, que estavam próximos a fronteiras internacionais, e armados com os instrumentos da vida nas propriedades rurais, os estancieiros os tratavam como outros ajudantes. Isso não era grandeza democrática, mas sim a praticidade do controle social sobre os escravos numa economia carente de mão-de-obra. P - O que aconteceu na Batalha de Porongos? Houve um acordo entre as tropas do Império e os farroupilhas? SL - Sim, houve mais do que um entendimento entre certos líderes farrapos e Caxias. Haviam decidido sacrificar os farrapos negros em Porongos. Pedro de Abreu levou adiante as ordens de Caxias enquanto Canabarro inacreditavelmente desarmou suas próprias tropas negras. Canabarro era também um guerreiro experiente demais para ter deixado seu acampamento desprotegido e sem guarda. Bento Gonçalves, que havia lutado duramente pela liberdade dos farrapos como uma cláusula essencial nas conversações de paz, foi incensado. Poucos dias após a batalha de Porongos, escrevendo de seu acampamento militar, Bento Gonçalves destacou as ações de Canabarro: “(…) eram tão visíveis que só poderiam ser ignoradas por quem não quisesse ver nem ouvir, ou por quem só quisesse ouvir a traidores talvez comprados pelo inimigo!!!” Se os farrapos tivessem colocado em serviço, como observou o general Portinho, todos os seus homens escravos, o resultado da Revolução Farroupilha poderia ter sido diferente. Porém, a liderança rebelde nunca contemplou realmente uma total e completa emancipação. Ao final, nem os farrapos nem os legalistas queriam ex-escravos, politizados e armados, interferindo com a paz próxima, a qual demorou tanto a chegar. P - Qual era o objetivo real dos revoltosos da época? Como foi construída a imagem de libertadores, republicanos e guerreiros que lutavam por causas nobres? SL - Esta é uma questão tortuosa para mim, com a qual eu continuo a lutar. Porongos e suas conseqüências para os farrapos foram seguramente uma tragédia. Havia alguns que acreditavam que estavam construindo uma nova democracia na América ao abalar o desprezado império de influência lusa. A Constituição, que nunca foi aprovada pelos farrapos, durante os estágios finais da guerra em Alegre, foi um testemunho da tenacidade e inspiração de alguns deles. Mas, para contrabalançar, no entanto, eu diria que a liderança farrapa era composta de bravos guerreiros que estavam buscando, em primeiro lugar, e acima de tudo, seus próprios interesses pessoais. Tal atitude e comportamento intensificaram-se após a publicação dos decretos do governo farrapo, em 1836, com o confisco da propriedade daqueles que se opuseram à rebelião. Os líderes farrapos estavam sempre voltados para a expansão e guarda segura de seus próprios escravos, terras e gado, em detrimento do grande fim de estabelecer um estado republicano independente. Lembrem-se de que esses eram homens de seu tempo, que achavam difícil, se não impossível, erguer-se acima de sua própria história, tradição e cultura.
21.10.2007 (Via Politica)
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